quinta-feira, janeiro 31, 2008

Suco de Capitalismo em Pó

No Jornal da Globo de anteontem, uma série sobre a indústria automobilística destacava a transformação neste segmento na República Tcheca. No texto, a repórter dizia que os carros tchecos durante os anos de socialismo eram “robustos, de fácil manutenção e muito atrasados em tecnologia”. Ou seja, eram carros práticos, e principalmente, duráveis. Produtos para famílias que até então se importavam com coisas importantes além da cor, do design, que não ligavam muito se não existisse ar-condicionado no verão do leste europeu ou se o preço do carro iria impressionar seus vizinhos mais pobres.

Mas agora, segundo a mesma repórter, a indústria tcheca passa por uma “revolução”. Como o povo da República Tcheca possui escolaridade relativamente alta, mas recebe salários muito baixos em relação aos pagos na parte ocidental da Europa, nunca foi tão lucrativo fabricar ou montar carros por lá. Todas as empresas do capitalismo ocidental chegaram colocando os trabalhadores tchecos para trabalhar na construção de carros que não serão consumidos pelos mesmos. Ou seja, 90% dos carros montados no país são destinados à exportação. Uma ex-nação socialista agora monta carros que serão vendidos em toda a Europa capitalista, quem sabe até nos Estados Unidos da América. A grande ironia da vida pós-guerra-fria é pensar que o capitalismo transforma os desejos publicitários na coisa mais natural do mundo.

Estou longe de ser um desses corneteiros chatos que vivem defendendo Cuba ou a antiga União Soviética, não odeio nem apoio muita coisa, só vivo, sinto e observo. Não sou socialista, comunista, de esquerda, de direita ou porra nenhuma. Só acho que é muito estranho ouvir alguém dizendo que uma coisa que é bastante útil, barata, simples de consertar e feita pra durar muito tempo é obviamente atrasada em relação à outra coisa que é poluente, cara, de manutenção complicada e durabilidade física pífia (isso para não falar na capacidade de tornar-se obsoleta em relação aos novos modelos). Um carro mega-moderno ocidental não é tão naturalmente superior aos carros que eram fabricados no leste europeu socialista, como pode parecer. Ainda mais analisando o contexto em que eram fabricados.

Mas dizer isso é bater diretamente de frente com o ideal capitalista básico. As coisas não são feitas para funcionar ou durar, elas são fabricadas para uma futura troca por outra coisa nova. E o tempo desse ciclo é cada vez menor. E mais natural. Virou lugar comum que a tecnologia é boa em si, que “o meio é a mensagem” e esse monte de besteiras já cotidianas. Como se o uso de cada coisa não fosse o que realmente determina o seu valor, e hoje para todos os olhos parece definitivo que não determina mesmo.

As nossas células é que são naturais, os excrementos que ficam lá no banheiro, a segunda-feira, o sábado, o domingo, tudo isso é natural, mas a tecnologia e o discurso publicitário não são; os dois dependem diretamente do que é dito, de como é dito, de pra quem é destinado o discurso, de um outro amontoado de fatores que vão determinar sua importância ou não. Só que nessa época onde até a água já tem sabores diferentes e é vendida pela Coca-Cola, parece que natural mesmo é o novo, natural é o caro, o prazer do que pode parecer momentaneamente calar nossas necessidades mais básicas.

Não é a toa que todo dia muita gente se mata sem motivo, fica triste sem motivo, chora sem motivo, tem síndrome do pânico, sente falta de alguma coisa que não sabe o que é, sente medo, solidão, falta, tristeza, vazio existencial, vazio da alma, vazio. Não é à toa esse caminhão de depressivos que faz funcionar uma outra engrenagem de psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, e principalmente, de remédios antidepressivos. Tudo isso sem nenhum motivo aparente.

Pois é, o motivo não é aparente mesmo. Ele é só natural. Natural até demais.