segunda-feira, maio 31, 2010

carta simples datilografada

se você ainda falasse comigo, se ainda fosse possível te encontrar, eu diria que o tempo foi bom, que passar esses dez anos me afastando do teu cheiro, dos seus cabelos encaracolados, dessa sua bondade esquizofrênica e a pele do seu rosto, tudo isso valeu a pena, mesmo não sendo planejado, aconteceu, um dia eu estava na cama do cubículo que me cercava de ódio, que me desintoxicava do que você havia me transformado, um ser óbvio, patético, eu estava lá olhando o teto e tentei repetir mil vezes o dia em que você apareceu, o show do sean lennon, o carro pela cidade de merda que era a nossa, e não consegui, não conseguia nem me mover. pra você eu nunca aconteci, eu passei, deixei marcas no seu piano, mas ser a transformação que iria te tirar desse buraco, eu não fui, mesmo parecendo surreal hoje pensar naquela viagem, em são paulo te engolindo com suas catedrais imundas, que caminhão te atropelou, minha filha, só eu sei, acompanhei a expressão dos seus olhos gravando tanto concreto, todos aqueles prédios, a sujeira de uma cidade de verdade, não essa merda sem cheiro a que fomos acostumados, mais velho ainda sou o mesmo, e não deixei o medo diminuir a minha vontade de tocar a vida pra frente, lembra, nós queríamos países, que piada, você não aguentava ir até a esquina e eu te amava, agora me explica, por que eu era tão idiota? queria mesmo te trazer até aqui e não conseguia entender que a vida vai pro lado que a gente aponta, não o contrário, mas eu mesmo posso dizer que plantei toda essa impossibilidade, que menti, que inventei, que não era adulto suficiente, que não era nada pra você. você podia ser. eu ainda não. nesses dez anos perdi todos os amigos, os caminhos que eram seguros, muita gente me odiou até aqui, até conseguir ser quase esse cara que é a tua cara metade, a tua cara metade do passado, mas infelizmente, você já era, e um dia eu volto pra te escrever uma carta nova, te mandando ir a merda, que você merece e não merece, ao mesmo tempo, é um pouco confuso, mas talvez faça sentido se conversarmos pontualmente a verdade, coisa que não consigo com facilidade, mas ando precisando, limpar o inventado e enfrentar a vida sem narrativa elaborada, dizer, eu te amava, muito, sofri muito, mas segurei firme e agora estou pronto pra verdade, para as minhas verdades, que são tantas, todas soterradas pelo meu medo de ser quem eu sou. um cara óbvio, já disse. que quer apenas acertar as contas com o passado para descansar e ser eu mesmo. só isso.

quarta-feira, maio 12, 2010

um vazio de tédio e desencontro

quando não se quer algo, quando não se quer nada, a vida toda está errada. ela, a garota, não consegue unir os pedaços de trajetória que guarda em uma caixa de sapatos listrada. andou todo o caminho e não sabe que curva diz alguma coisa sobre ela mesma, qualquer coisa pouca, um detalhe, que esclareça o que é ser alguém hoje em dia. tudo parece vazio e os círculos não se encontram em nada, são vários, um amontoado de espaços vazios. ela passa o tempo pensando em que razão ele poderia ter para não deseja-la, mas a vida é óbvia quando bate no rosto, você é um tesão, claramente o sonho de quem quer desafogar um sonho, corpo de sangue, seios e bunda, ironia de olhar agora, filha de um passado onde sou puro, amoroso, apaixonado, logo ela que era um poço de certezas e descobertas sobre a vida, que engraçado, ela, um navio enorme, não sabe onde enfiar a cara.

e o lobo a espera ali na frente. sedento.

sexta-feira, maio 07, 2010

sobre o sentido ou nota afetiva da redação

viver dentro de uma história, ser parte de uma narrativa, é muito mais satisfatório do que viver sem uma. eu nem sempre sei qual é a narrativa, porque estou vivendo minha vida e nem sempre refletindo sobre ela, mas enquanto edito estas páginas estou consciente de que tenho uma certa vontade de ver minha caminhada, às vezes aleatória, como se tivesse um plano, um fim guiado por alguma história subjacente. imagino que se pudesse me afastar e olhar para a minha vida, eu veria que esta série de encontros e eventos não foram simplesmente aleatórios, que tiveram que acontecer do jeito que foi. na medida em que a história é reescrita de novo e de novo, eu começo a imaginar que as nossas vidas aqui têm tantos fios narrativos possíveis - que o número de histórias humanas é certamente infinito. heroico, trágico, chato, catastrófico, ridículo e belo. todos nós vivemos essas histórias e, quase sempre, nossa narrativa inclui mais de uma delas.

david byrne, bicycle diaries